quarta-feira, 27 de abril de 2011

Ribamar de José Castello




Se você quiser voltar os olhos ao passado, não para desenhar a falsa imagem positivista de que todo tempo passado foi melhor, mas para olhar com honestidade, recomendo a leitura do Ribamar de José Castello, ( Bertrand Brasil, 2010, 280 páginas).

Tive a sorte de participar de uma oficina de Crônicas que Castello orientou na Fundação Cultural de Curitiba. Uma amiga havia comentado que era um grande orador, e eu o imaginei um mago da palavra: apaixonado e inovador, capaz de jogar um livro pela janela (isso acontece muito nos filmes). Mas o jeito calmo de Castello, reservado, a estrutura de sua aula, ao estilo de um professor universitário, devo confessar que me incomodou no início. Pensei em participar um mês e depois decidir se daria continuidade. Acho que foi na terceira aula que Castello fez um comentário, não me lembro do que falou exatamente, mas lembro sim que me atingiu em cheio. “Esse cara é um gênio”, pensei.

Algo semelhante acontece com o Ribamar. O livro é uma viagem que permite olhar a paisagem e pensar na própria vida, fazer inventários de acontecimentos reprimidos que voltam à consciência.

Castello faz uma tarefa profunda dando dimensão a seu personagem, mas essa tarefa nem sempre é percebida pelo leitor. Entramos na história, o autor vai introduzindo os personagens, tópicos da vida que a maioria prefere esconder, talvez porque a sociedade moderna nos tenha ensinado a arte da hipocrisia, somos da época do botox e do photoshop em que é difícil envelhecer... com honestidade. Por sorte, o livro do Castello foge disso, foge da banalidade, leva-nos pela mão para a época de criança e para o mundo das recordações, é quase um convite para abrir o livro da própria vida, o álbum escondido, e reviver fatos, emoções, como faz o personagem.
O relato da viagem ao Piauí, cidade onde o pai de José passou a infância e a juventude, é também uma busca do passado, talvez para encontrar o próprio eu, para entender-se como subjetividade. “(...) este livro é uma travessia. Não escrevo sobre você. Eu escrevo através de você.”
A música que ele intitula “Cala a boca” o persegue, então decide: “o livro que escreverei, Ribamar, terá a estrutura dessa canção” (pág. 92).
Paralelamente à história do menino, aparece o livro “Carta ao pai”, de Franz Kafka, que o personagem dá ao pai em 1973. O filho se pergunta se o pai alguma vez olhou o livro. Vemos a identificação Hermann Kafka-Ribamar – pais repressores e inesquecíveis.
O leitor pode perguntar-se: personagem ou autor estão identificados com Kafka? Difícil dizê-lo. Castello gosta de brincar com nossa curiosidade. Ele não entrega suas memórias, Ribamar não é uma biografia, o escritor reconfigura suas recordações. Essa viagem interior não é para reconstruir uma história real em todos os detalhes, mas para reconstruir seu mundo emocional e subjetivo. O romance lhe serve de espelho, um reflexo de seus estados internos de consciência.

Ribamar não é um livro simples. Não é confissão nem desabafo, é literatura. Nunca sabemos quando o autor está fazendo uma confissão ou está contando um fato imaginário. Ribamar encoraja o leitor a olhar para dentro, para descobrir-se. É possível descobrir esse caminho aberto a novas descobertas no excelente final. Quem será o próximo a sentir a influência de Kafka?
Muitos de nós, ao ler “Carta ao pai”, em algum momento sentimos desejos de gritar: O pai de Kafka representa meu pai. Sentimos que Ribamar, agora velho e doente, já foi um homem poderoso aos olhos da criança. Ribamar influenciou José. Influenciou o caráter, a personalidade do “menino com olhos de peixe”.

O autor já disse: “reinventamos nosso passado, de modo que ele se torne suportável e nos ajude a sustentar um projeto de existência”.

Castello sempre foi reconhecido como jornalista cultural e como escritor de biografias e outros gêneros de não-ficção, talvez seja o momento de reconhecer sua capacidade como romancista.
Poderíamos até afirmar “profissão: jornalista – coração: romancista”, pois Ribamar foi escrito seguindo a voz do músculo cardíaco. Batimento de lembranças e emoções.

Destacamos que essa obra foi uma das ganhadoras do Prêmio Machado de Assis (2° lugar) outorgado pela Fundação Biblioteca Nacional, edição 2010.

A leitura do Ribamar é prazerosa, a linguagem clara (sem artifícios desnecessários), com momentos de profundo impacto emocional. E quando terminamos de ler a última página, pegamos uma caneta copiamos frases e parágrafos para pensar neles com calma. Ribamar é um livro para saborear lentamente, pois deixa em nossas papilas gustativas o sabor da infância, dos sonhos, dos conflitos e da terrível aventura de haver nascido seres humanos.


Resenha de minha autoria que foi publicada no site Digestivo Cultural em 05/01/2011.

Um comentário:

  1. Olá, Isabel.

    Parabéns, adorei a resenha. Convido-te para ler a que eu fiz, a respeito do mesmo livro. Um abraço.

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